Domingo no parque

Há uma toalha xadrez nas cores branco e vermelho sobre a grama e eu estou sentada sobre ela, com uma maçã em uma das mãos, e um livro na outra.

À minha frente há um cesto aberto, recheado de outras maçãs, e também peras, pêssegos e ameixas.

Não me decido sobre qual fruta desejo comer ou mesmo se desejo comer alguma delas, mas seguro a maçã vermelha e encerada. Olho para ela. Sinto sua textura lisa. A analiso.

O livro que seguro com a minha outra mão é pesado. Capa dura azul marinho, inscrições em dourado, páginas amareladas recendendo à umidade. Meu pulso dói por segurá-lo, mas não quero deixá-lo sobre a toalha. Preciso manter a sensação de que começarei a lê-lo a qualquer momento. Sei que vou lê-lo. Não sei quando.

Em um canto da toalha há uma bola. Não a trouxe para uso, mas como lembrança. De que existem brincadeiras, mas também eternos retornos.

O sol é agradável. Venta moderadamente. Árvores verdejam ao meu redor. Afora poucos sons da natureza, há silêncio. A despeito da indecisão sobre a maçã, do peso do livro, da inquisição imposta pela bola, me sinto bem.

Conheço esta maçã porque eu a colhi. Este livro eu mesma tirei da prateleira. Quero que a bola me questione sobre enganos redondos e certezas agudas. Me impus muito o que fazer mas me sinto em paz e confortável.

E então há um homem

Além da grama

Ultrapassando uma faixa de asfalto

De pé sobre uma calçada de concreto

Do outro lado da rua

Sozinho, mãos vazias, rodeado pelo nada

E ele grita:

“Vem!”

E apenas porque ele grita “Vem!”, eu arremesso o livro sobre a toalha, solto a bela maçã encerada e vejo ela rolar sobre a grama, me coloco de pé derrubando a cesta de frutas, passo bruscamente pela bola chutando-a para longe.

Apenas porque ele disse “Vem!”, eu sigo.

E atravessando a rua ao seu encontro: sem medir meus passos, sem olhar para os lados, sem calcular minha rota… acabo atropelada por um veículo amarelo.

Com açúcar, sem afeto

A sensação de fracasso é comumente descrita como uma bola de espinhos pressionada contra o peito desnudo quando se está deitado, mas a verdade é que às vezes ela se parece com um bola de algodão doce, etérea, brilhante e coloridamente irresistível, que a gente só quer colocar na boca, sentir derreter sobre a língua, engolir seu açúcar pungente e aí sim, sentir ela se transformar em um bola de espinhos no peito dentro da gente.

Eu não sei de onde nasce exatamente essa vontade de carregar todas as culpas, mas eu a tenho. E mesmo nesta situação em que qualquer ouvinte me classificaria como vítima – do ladrão de celulares que me levou o aparelho no sábado, do mal respiratório que me acometeu no domingo, de você ter ido embora novamente na segunda – eu quero pegar alguma coisa pra mim e por na boca. Salivar. Mastigar. Deglutir. Intuo que carregar parte da culpa amenize a sensação de estar à mercê quando tudo o que se deseja é estar no controle.

Venhamos e convenhamos, fevereiro foi um verdadeiro furacão. E eu girei, girei, girei e mal contive minhas saias esvoaçantes.

E da mesma forma que as coisas me apareceram como bolas de algodão doce, com sua pequena notinha de dinheiro falso apregoado, verdadeiras promessas de uma delícia quase criminosa em meio à desgraça geral e irrestrita, agora que eu as peguei e comi, sinto gosto de fracasso. A sensação empapuçante sequer esperou o menor mês do ano acabar para se instalar.

Nós que comemos fracasso, geralmente vivemos a vislumbrar o fracasso, esperar por ele, como a criança que sabe que se o vendedor de algodão doce sempre passa às cinco horas, é esperado que às cinco horas ele apareça. Certa vez eu te confessei que temia torcer pelo fracasso, pelo simples fato de que estava acostumada a ter a sensação empapuçante procedindo cada bola de algodão deglutida, de tal forma que eu talvez não saberia o que fazer se após o ato de engolir me viesse um vazio de pura esperança e frescor.

E como quero muito comer esta bola rósea de fracasso que pende do tronco à minha frente, começo a imaginar que talvez eu tenho ansiado tanto por ela, que eu mesma a tenha produzido, de alguma forma, só para me satisfazer. Você, vê, por mais que discorde a platéia, não tem culpa alguma.

Seja como for, da forma como eu temia, vislumbrei ou pari, cá estou eu com toda esta glicose na boca.

E agora me ocorre quão curioso é eu ter escolhido justo o algodão doce como metáfora, coadjuvante de uma das minhas mais singelas lembranças pueris.

Me recordo de andar com minha mãe pelo bairro onde morávamos e de não ter mais do que cinco anos. Cruzávamos sempre com o vendedor de algodão doce e para me comprar o item tão desejado, minha mãe me instigava a repetir nossa brincadeira mais íntima.

Ela dizia:

– Nenem, você me ama?

E eu respondia:

– Amo!

Ela retrucava:

– Mentira!

E então eu a abraçava pelo pescoço e finalizava:

– Amei!

Será esse o germen da minha necessidade lancinante de confirmar que sou mesmo amada, admirada, desejada, por quem se propõe a entabular um jogo comigo? Oh Freud, a confirmação jocosa de minha abnegada mãezinha?

Vejam!

Vocês estão a presenciar a formação quase mágica de mais uma bola de algodão de culpa e fracasso, ao simples girar de uma vareta no tambor dos meus sentimentos. Não se ofendam, mas esta é minha. Vou pegar um copo de água pra engolir mais fácil.

 

 

 

 

 

Um baobá da cor dos seus olhos

É uma encruzilhada este lugar onde eu estou.

Não que existam esquinas, já que muitas léguas ao redor há apenas terra devastada.

Mas eu olho para baixo e vejo uma cruz, feita com fita vermelha, como as cruzes dos desenhos animados, colocadas sobre a terra para demarcar o lugar onde um pirata enterrou seu tesouro.

Talvez eu seja o tesouro.

E como numa brincadeira de opostos, aqui de pé sobre esta cruz, estou tão exposta e insegura, quanto nenhum tesouro poderia estar.

Além disso, estou imóvel. Mais precisamente: imobilizada. Estou sobre a cruz e sei que ela é um ponto de encontro entre muitos caminhos. Mas por forças estranhas não consigo mover meus pés para nenhuma direção, ainda que a minha boca anseie pela água que deve existir depois da aridez.

Talvez a cruz nunca tenha sinalizado um tesouro, mas sim uma mina. E a força que me mantém imóvel seja o meu próprio medo de que qualquer ação vá me explodir em pedaços.

Eu fecho os olhos, respiro fundo e então consigo ouvir um farfalhar de folhas muito, muito longe. E quando abro os meus olhos, consigo ver os baobás que me cercam muito, muito longe. Como uma promessa de sombra, de descanso. Uma provocação dos deleites que eu nunca terei, porque permanecerei aqui imóvel sobre a cruz escarlate: exposta, insegura e aterrorizada.

Misturando minha substância à da terra devastada.

E o lobo soprou e soprou…

Criar um filho sozinha é como usar um vestido curto e muito decotado no meio de um vendaval.

Se você levar as mãos ao seios, sua bunda inevitavelmente aparece; se abaixar os braços e puxar o vestido para tapar as partes pudicas, acaba mostrando os mamilos.

E para tentar controlar seus cabelos, e ver mais claramente o que te rodeia, precisa abrir mão de que qualquer outra coisa abaixo do pescoço permaneça no lugar.

E, claro: eu só tenho um vestido porque tenho muitos, muitos privilégios. Quando olho pro lado, vejo um sem número de mulheres nuas, tentando tapar suas vergonhas com as próprias mãos.

As pessoas frequentemente perguntam porque eu não relaxo e não desisto de certos pudores, ciente que sou de que o vendaval não vai parar. Mas quem é que se sente confortável, girando perdida em um redemoinho caótico, com as partes expostas pra todo mundo ver?

Além do mais, faz muito frio dentro desse vendaval.

Eu já disse pra muitas meninas, prestes a entrar neste vestido, para enfrentar o mesmo vendaval: “você consegue”. Mas geralmente eu me furto de complementar: “…porque não há mais o que se fazer”. Você consegue, de peito desnudo, nós nos cabelos e pés doloridos pelo esforço de permanecer de pé sobre o mesmo lugar.

O vendaval quase nunca dá intervalos e não há casa nessa alegoria, onde você possa entrar, tomar um banho e pinçar do guarda-roupa uma veste mais apropriada para o clima. Às vezes alguma pessoa se interpõe entre você e a ventania, oferecendo alguns momentos de paz para que você se recomponha, e quem sabe consiga até prender os cabelos.

Mas costuma ser bem raro aparecer aquela pessoa que pode e quer e consegue entrar no vendaval, pra te colocar um casaco.

Diários de uma ansiedade 7 – Pira, transpira. Para! Respira!

Quando você é ansioso, você dificilmente consegue relaxar a respeito de coisas importantes. O que significa que mesmo os acontecimentos felizes te levam a encruzilhadas emocionais: você sente que precisa fazer algo para consertar qualquer pequena aresta que aconteça, porque afinal de contas essas pequenas arestas podem ser o prenuncio de um terremoto, e você não quer perder aquela felicidade, além de não ter tempo na agenda para lidar com um terremoto, e aí você começa a antecipar os riscos, e fazer contenções… e, sim, geralmente nesse processo, você se mexe tanto que quem provoca o terremoto é você.

Então, eu estava aqui na encruzilhada desta semana, investigando obsessivamente o caminho que eu percorri, pra saber exatamente onde foi que eu tropecei pela primeira vez, e dando voltas em meu próprio eixo para tentar olhar os supostos milhares de caminhos que posso percorrer, quando o conselho do universo de materializou em forma de presente: uma amiga me deu um cristal. E esse cristal me lembrou que a única obrigação realmente inalienável e eterna que eu tenho é comigo mesma, e é isso que eu preciso consertar. Por mim. Não importa muito o resultado externo que eu vá obter. E isto, nesse exato momento, significa recarregar.

E respirar. O que inclui abrir ao máximo meus próprio plexos, para receber e acolher a pessoa que a minha vida me fez ser, e de quem eu jamais vou conseguir fugir, apesar de acreditar que eu sempre posso ser hoje um pouquinho melhor do que eu fui ontem.

Mas como eu não poderia sair dessa berlinda sem alguma resolução, eu fiz quatro muito importantes:

  1. Dar o banho de alfazema na minha casa nova, o que eu sempre quis fazer e nunca fiz.
  2. Repor o meu estoque de chá calmante pra tomar antes de dormir, que acabou há duas semanas e eu não repus.
  3. Descobrir qual a melhor maneira de energizar o meu cristal e onde devo colocá-lo.
  4. Começar a meditar

Muitos conselhos sobre saúde emocional falam sobre a importância de reduzir os ruídos externos para conseguir ouvir seus próprios instintos, incômodos e necessidades. Acontece que a minha cabeça está sintonizada em vinte rádios diferentes que eu mesma transmito. Então, eu preciso diminuir meus próprios ruídos.

 

 

 

 

Com sal, com amor

“- Mãe, quando a gente voltar pra nossa casa, você faz a sopa de batata pra mim?”

Faz quatro meses agora que o meu filho foi passar uma temporada na cidade onde eu cresci, porque as coisas ficaram difíceis de administrar na megalópole onde eu escolhi viver. Faltam três semanas para que ele volte, a passagem já está comprada, os queridos avisados, os arranjos feitos… vejamos então se será possível para mim falar.

Desde o início eu sabia que ele voltaria, mas eu tenho acordado todos os dias nesses quatro meses, como aquele poema da Wislawa: tudo o que eu sei é que eu tenho um filho, o resto eu ignoro. Sinto como se eu não soubesse que ele vai voltar, como se o tivesse perdido nas teias da vida, como se não estivesse nas minhas mãos decidir…

Há culpa, evidentemente. Como uma mãe pode abdicar de conviver diariamente com seu filho por quatro meses? Mas há um tanto grande demais de amor. O mesmo que as minhas mãos emanam sobre a sopa de batatas – baroa – que virou o prato preferido do moleque… esse mesmo que cresceu às minhas vistas, e ainda assim me surpreende que não seja mais um bebê: escolhe a sopa e a toma sozinho. Com o estímulo certo, até recolhe o pratinho à pia ao final da refeição.

E eu que gosto tanto de batata baroa, há quatro meses não cozinho a sopa. Não há inverno que a faça ter sentido. E como toda sanidade tem suas fronteiras, eu acabaria temperando-a com lágrimas.

Mas deixo a receita, sem quantidades exatas, e você vai experimentando quando for fazer… Como é a vida, e como é o único jeito que eu sei cozinhar:

Refogue cebola e alho em azeite. Junte batatas baroas cortadas, e um pouco menos da metade delas, de batatas normais. Adicione uma folha de louro, um ramo de alecrim, moa um pouco de pimenta, e jogue um tico de sal. Junte água, apenas o suficiente para cobrir os legumes. Tampe e deixe cozinhar. Quando estiver tudo molinho, tire a folha de louro e o ramo de alecrim e coloque o restante no liquidificador. Bata com um pouco de leite de coco, e caldo de legumes caseiro, se você tiver em casa. Coloque mais água, ou caldo, ou leite de coco até que a mistura resulte num creme. Refogue alho poró em azeite numa panela, e junte o creme batido para finalizar com o sal que for preciso e noz moscada ralada. Se a ocasião for especial, ou o mês estiver em seus primeiros dias gordos, gorgonzola em pedacinhos na hora de servir.

E não se deixe enganar por esse post: esta é uma receita absolutamente feliz. E vai voltar às minhas panelas, assim que ele também voltar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É “mãe solteira”, por favor

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Você já deve ter lido em algum lugar da internet que não é mais adequado se referir às mães que tiveram seus filhos fora de uma relação estável como mães solteiras. Agora, nós as chamamos de mães solo.

Por favor, não faça isso comigo.

A principal intenção dessa mudança é retirar o estigma das mulheres que tiveram filhos, apesar de não terem cumprido com o percurso de se casarem antes, o que ainda é considerado correto. E o principal argumento é que as coisas não precisam estar entrelaçadas, e são muitos os casos em que não estão, o que demonstra que a maternidade se refere a um processo envolvendo a mulher e seu filho, não a mulher e seu estado civil.

Mas deixa eu te falar uma coisa sobre esse estigma. O termo mães solo, por definição, deve englobar ainda mulheres que tiveram filhos sem um companheiro por opção, e mulheres que se divorciaram após terem filho. E o que acontece com toda a gama de especificidades de nós mulheres que nunca tivemos nossa maternidade legitimada por uma decisão vanguardista ou um casamento?

Há no Brasil pelo menos 20 milhões de mães solteiras, de acordo com dados do IBGE. Sim, isso é um quinto das mulheres do país. Eu sou uma delas. Conheço pelo menos cem mulheres que também são uma delas e sabe o que todas as mulheres mães solteiras que eu conheço temos em comum? Um fazer materno dificultado de maneira absurda e desnecessária porque somos solteiras. Dificultado pela sociedade, pelo Estado e suas instituições, pelos nosso familiares, pelos nossos empregadores e principalmente pelos pais dos nossos filhos.

Desde o primeiro instante.

Quando você não possui um relacionamento estável com o pai do seu filho são grandes as chances de ele questionar sua participação naquela concepção. E como se não fosse contraditório, também são grandes as chances de ele te acusar de ter engravidado de propósito, para prendê-lo em um relacionamento ou drenar o seu dinheiro. Frequentemente, assim que o bebe nasce, ou até antes, há a realização de um exame de DNA, mesmo que não exista indícios que demonstrem essa necessidade. Todas as mães solteiras que eu conheço tiveram que ir à Justiça para garantir que os filhos recebessem pensão ou que esta chegasse a um valor justo, sempre questionadas pelos pais, porque não é possível que a criança realmente precise daquela quantia de dinheiro, ou que a mãe realmente a esteja investindo em seu bem estar.

A mãe solteira é uma mentirosa.

Quando você não possui um relacionamento estável com o pai do seu filho é muito provável que ele se aliene de toda a gestação e de suas demandas práticas e emocionais, afinal de contas ele possui um vínculo com aquela criança, mas não possui nenhum compromisso com você. A mãe solteira peregrina por médicos, salas de exame, lojas de produtos para bebês sempre completamente sozinha, sempre envergonhada pelas perguntas dos conhecidos, sempre sob olhares de comiseração e reprimenda: “E o pai? Tadinha. Mas porque não se cuidou?”

A mãe solteira é uma coitada irresponsável.

Quando você não possui um relacionamento estável com o pai do seu filho, você geralmente se vê tomando todas as decisões completamente sozinha. E empreendendo sozinha todas as decisões que tomar. Não por opção e não que isso te proteja de ser questionada após a ação já ter sido feita. Afinal de contas, a vida prática da criança acontece de segunda a sexta, quando ela geralmente está com você. Vai para a escola? Qual? E nas férias escolares, o que ela vai fazer? Precisa de médico? Qual é melhor? Evidentemente isso acontece também com muitas mães em relacionamento estável e vai continuar acontecendo em todos os arranjos até que a gente obtenha uma coletivização dos cuidados com crianças. Mas dizem por aí que um “novo pai” está se formando e algo me faz suspeitar de que ele vai chegar com atraso para as mães solteiras. Experimente, por exemplo, reclamar. Logo alguém aparece para te lembrar de agradecer, afinal de contar o pai do seu filho é um ser de luz que o vê religiosamente de 15 em 15 dias e está até pagando pensão em dia.

A mãe solteira aprende na marra que suas expectativas de companheirismo devem ser ainda menores do que a média.

Quando você não possui um relacionamento estável com o pai do seu filho, você às vezes ainda almeja ter um relacionamento com alguém. Mas pelo experimento desta mãe com o Tinder, já é possível perceber o que as pessoas acham de mães solteiras abertas a experiências sexuais ou amorosas. Eu comecei a namorar alguns meses depois do nascimento do meu filho, e por muitas vezes o meu namorado foi questionado pelos amigos por tomar essa decisão louca de ficar com uma mulher que claramente só queria um idiota para posar de pai postiço do seu filho. Mais recentemente, um ficante ao ouvir essa historia perguntou: “mas o cara teve coragem de ir morar com você, mesmo você tendo um filho?”. Cruel, mas bastante honesto. E é claro que você vira uma engravidadora em potencial, afinal de contas se já “fez” com um, o que garante que não vai engravidar de novo de todos os caras com quem ficar? Além de ser o contatinho promíscuo certo: se teve um filho é porque dá pra qualquer um, logo não vai “fazer charminho” com ninguém. Acredite, eu já ouvi essa também.

A mãe solteira ou é promíscua ou se protege desse julgamento permanecendo sozinha.

Quando você não tem um relacionamento estável com o pai do seu filho, e precisa comunicar isso em escolas, unidades de saúde, ou outros serviços que esteja buscando para ele, a investigação sobre a sua conduta será muito mais rigorosa. Afinal de contas, se você foi irresponsável o suficiente para ter uma gravidez indesejada, quais as garantias de que se esforça para cuidar bem daquela criança?

A mãe solteira é um perigo em potencial.

Quando você não tem um relacionamento estável com o pai do seu filho, os empregadores sabem que você é uma pessoa sobrecarregada, e já pressupõem que não será uma boa profissional, por não conseguir colocar o seu trabalho como sua maior prioridade, ou por ter sempre outras demandas, que te cansam ou desconcentram.

A mãe solteira não é confiável.

Quando você não tem um relacionamento estável com o pai do seu filho, muitas pessoas concluíram que a solidão e a exaustão são um preço justo a se pagar para que você consiga expiar pelo pecado do sexo que resultou em uma gravidez. E será preciso coragem extra para vencer a culpa internalizada e as pressões externas, para fazer coisas simples como deixar seu filho com amigos para se divertir sozinha ou ter um encontro. O que ocorre em alguma medida com todas as mães, mas de maneira ainda mais pungente com aquelas que “não deveriam ser”. Mesmo dentro da sua própria casa, você pode ser acusada por familiares de negligência ou desamor, por “terceirizar” funções que deveriam ser suas e sempre suas. Ainda que muitas mães solteiras, como eu, contem com a ajuda de pessoas próximas – especialmente mães, tias, irmãs – há uma expectativa geral de que você passe a viver para o seu filho, e somente para as coisas relacionadas ao desenvolvimento e bem estar dele, assumindo-o como seu grande e único companheiro, e embevecendo-se somente da satisfação que ele pode te proporcionar.

A mãe solteira, se não for uma abnegada, é uma encostada.

Me digam: não são muitas – e em certa medida muito específicas – as situações em que os questionamentos sobre a sexualidade das mães se alia aos questionamentos sobre a honestidade de mulheres sem companheiros? Todas as mulheres em algum momento da vida serão vagabundas. Mas as mães solteiras parecem ter um talento especial pra carregar a alcunha. E carregam. Desde a fundação da nossa sociedade sobre a pedra da família nuclear monogâmica.

Eu compreendo o esforço de rejeição e quebra de todos os muitos rótulos identitários que nos normatizam e contêm, mas se ainda precisamos especificar essa categoria de mães na qual me encaixo – e eu acredito que precisamos, dada que vejo uma categoria aparte de dificuldades e opressões – eu prefiro ficar com a versão tradicional.Também compreendo, obviamente, que a modificação da linguagem é essencial para modificação das relações, mas já que as palavras que compõem o termo “mãe solteira” são apenas descritivas, e não carregam teor ofensivo em si, reitero: prefiro essa versão tradicional.

Afinal de contas, não são poucas as vezes em que preciso dizer meu status e eu quero que as pessoas tenham a exata dimensão do desafio que isso representa, desde o início. Na minha experiência, ser mãe solteira significa ter sempre menos do que as outras pessoas igualadas a mim por fatores como raça, identidade de gênero, classe social e ausência de deficiências. Menos tempo, menos dinheiro, menos disposição e disponibilidade, menos mobilidade e por outro lado mais trabalho, muito mais trabalho. Sabe aquela história da palavra “guerreira”, geralmente usado como atenuante de valorização para se falar de tantas mães sobrecarregadas? Eu sempre respondo que não sou nenhuma guerreira, só uma pessoa vivendo a vida que tem. Se a gente prefere a verdade crua e nua neste caso, porque deveríamos dourar a pílula na premissa?

 

Se fosse…

Se isso fosse uma série dramática, eu seria capaz de dizer em voz alta, muito alta. Em um ritmo acelerado, de quem quer encaixar o maior numero possível de palavras em um só fôlego, porque antes da próxima tomada de ar é provável que um irresistível desejo de desistência apareça e as frases acabem incompletas, interrompidas pela porta que bate.

Se isso fosse uma série dramática eu gesticularia amplamente, muito amplamente. Andaria de um lado para o outro na sala, como se a torrente de palavras precisasse da força cinética produzida pelas pernas para brotar pela boca e, ao mesmo tempo, como se a força cinética transformasse a torrente de palavras em seu produto inevitável, incontrolável e não deliberado, a respeito do qual não se pode determinar culpa.

Se isso fosse uma série dramática, eu me sentiria liberta, muito liberta. Afinal de contas, o esforço obstinado do meu interlocutor a princípio me provocaria incômodo, em um segundo momento me despertaria ira, para em seguida fazer nascer em mim estoicismo, mas ao final, ambos exaustos, a represa finalmente romperia, inicialmente violenta, e depois se recompondo em um remanso de compreensão.

Mas isso não é uma série dramática. E ainda que a resposta tenha vindo mentalmente imediata, ainda que a sala seja um consultório psicológico, ainda que os 120 reais semanais sejam pagos para que eu fale… Eu me calo e, dissimulada, ainda digo coisas outras, apenas para esconder o óbvio.

“Por que você não consegue se decidir?”

Eu não consigo porque sou incapaz. Eu sou incapaz porque sou sozinha. E sendo sozinha, carrego em mim todo o peso do meu próprio mundo e não há ninguém que sinta essa mesma espécie mui específica de comiseração e medo.

Eu me calo sobre isso porque tenho asco de que este pensamento me ocorra. Sozinha? O que poderia isto significar? Não enfrentaremos todos sozinhos a hora derradeira? O limite que a nossa pele impõe a respeito do que é a gente e do que é o mundo não garante que sejamos todos uno, portanto, sozinhos? Como outro alguém poderia dividir ou mesmo entender o peso do meu mundo? Como um outro alguém que não está apartado do mundo pela minha pele e pelo conteúdo que ela estofa poderia sentir a minha espécie mui específica de medo e comiseração?

Metafísicas, ontologias…

Não é isso que você quer, não é? Aplico palavras que nem sei se corretas clamando para que você veja meu fundo, que eu nem sei se tenho. São tantas as banalidades a serem pensadas e resolvidas por duodécimo de dia que às vezes me vejo medíocre. Quê tempo para metafísicas e ontologias? Não consigo decidir sequer em qual destas searas é que a vida realmente acontece. Misturam-se ou revezam-se? Intercalam-se entremeadas? Em qual proporção?

Shh… Aquiete-se! De mais a mais, até que pensei, mas não o disse. Por dentro pão bolorento pulsando estuporado. Por fora, dê-me a viola, duas cordas de nylon, saída fácil: “Não sei por quê. Só sei que não o faço”.

um, dois, mil cigarros

Então essa amiga que passa por momentos bem complicados na vida entra no elevador e traz um cigarro nas mãos.

E uma outra amiga que já estava no elevador, e não é uma desamiga enxerida, é amiga boa, com a melhor das intenções, interpela:

– Mas Fulana, você voltou a fumar? Não acredito!

A Fulana começou a fabricar uma feição de justificativa, mas antes que ela começasse a falar, eu interrompo:

– Fuma sim, Fulana! Fuma, enche a cara, faz o que você quiser. Porque a vida é difícil e a gente faz o que precisa pra continuar.

A gente tenta ser Joana D’arc e levar a vida na base da coragem e do estoicismo.

Mas às vezes a gente só precisa… fazer o que a gente precisa.

 

Jamais serei W.S.

Eu escrevia poemas quando era criança. Usava palavras que nem eu conhecia, impressionava professores e familiares, e algumas pessoas diziam que eles eram genuinamente bons.

O auge da minha verve poética foi entre os seis e os nove anos, mas aos doze eu ainda escrevia poemas espaçados, quando a minha família teve que se mudar da cidade onde a gente sempre viveu, após a primeira crise do meu pai.

A bipolaridade o tinha levado a consumir o que a gente tinha e o que não tinha. A cantilena diária dos credores era insuportável e era preciso arrumar novo emprego, num lugar onde fôssemos novos o suficiente para conseguir depois de tudo, e tentar repor o que fosse possível da dignidade balançada.

Eu não me lembro se rasguei ou se queimei todos os meu poemas, mas nessa nova casa temporária, eu os destruí e depois disso a poesia se foi de mim: ainda que eu tenha tentado, jamais consegui escrever um poema sequer que fosse bom.

Enquanto eu penso nisso, minha mente traz em segundo plano uma lembrança recente muito doce do menino. No exato momento em que meu cérebro a fabricava, eu já sabia que seria uma daquelas lembranças que a gente guarda na gaveta das sinapses definitivas, aquelas tão preciosas que nem o Alzheimer ou a demência ousam tocar.

Ele pediu que eu colocasse sua música preferida do momento para tocar no celular, deu a mão pra mim como sempre fizemos, e me tirou para dançar. De mãos dadas, sincronizamos um balanço, e ele intercalava sorrisos com tentativas de cantar a música francesa com arremedos tirados do seu português infantil.

Hoje por alguma razão eu acordei pensando: qual das suas inocências ou potencialidades eu e a vida vamos extirpar?