O meu texto defendendo a adoção das cotas recebeu uma avalanche de comentários. De início, eu prometi responder a todos, mas nunca imaginei que seriam tantos. De modo que escrevo este texto para esclarecer pontos comuns que grande parte dos comentaristas questionou ou não entendeu.

Primeiro, a respeito da própria natureza do texto. Ao contrário do que pode parecer, não foi um texto sobre as cotas em sua totalidade, mas um texto com um recorte, a respeito do privilégio branco e classe média e o comportamento de tais privilegiados diante da política de cotas. Este não é o cerne da discussão sobre as cotas, muito menos o único argumento existente para defendê-las.

Segundo, como eu disse, costuma ser bem difícil reconhecer os próprios privilégios e a caixa de comentários não faz nada além de reafirmar isso. Privilégio, aos que não entendem, é basicamente aquilo a que alguém tem direito ou acesso, enquanto outro não tem. Parece simples, mas, na verdade, é preciso, antes, que as pessoas aceitem que não existe ninguém melhor do que ninguém, mais merecedor de nada do que ninguém, especialmente quando falamos de políticas públicas.

Pois bem, na prática, isso significa pensar que o traficante da favela, por ser tão cidadão brasileiro como eu e você, merece ser tratado pela justiça com a mesma lisura que eu e você. Ou que o casal gay, sendo eles tão pessoas como quaisquer outras, merece se beijar em público, adotar filhos e se casar, assim como um casal heterossexual. Mas nós sabemos que a realidade não é essa: o próprio Estado, ao impedir que homossexuais se casem, por exemplo, exclui um sem número de pessoas de direitos que deveriam ser acessados por todos e eu acho que eu nem preciso falar sobre o que o senso-comum diz a respeito de casos como os citados, não é? Pois bem, é nesta realidade que se calcam os privilégios.

Voltando ao assunto do texto anterior. Hoje, estudar em uma universidade pública ainda é um privilégio. Não há vagas para todos, ao contrário: para apenas uma ínfima parte da nossa população. É um privilégio, ao passo que a educação é, na verdade, um direito que deveria ser garantido pelo Estado a todos os seus cidadãos. Quando chegamos a uma universidade (acreditem, senhores comentaristas, eu não sou uma estudante negra de ensino médio que estou defendendo as cotas apenas por que quero uma vaga. Eu já sou graduada em uma universidade federal, inclusive) nós percebemos que esse privilégio, o de estudar em uma universidade PÚBLICA, é da população branca e classe média. Usarei o meu exemplo: quando eu entrei na UFES, fui acompanhada por uma estudante negra e, creio que, por não mais de 15 estudantes pardos. Numa sala de 50 alunos. Entre nós, certamente, não havia nem 5 estudantes provenientes de escolas públicas. As consequências disso, eu não preciso dizer; o IBGE, muito mais gabaritado, faz isso por mim:

“No grupo de pessoas de 15 a 24 anos que frequentava estabelecimento de ensino, houve forte diferença no acesso a níveis de ensino pela população segmentada por cor ou raça. No nível superior, encontravam-se 31,1% dos brancos nesse grupo etário, enquanto apenas 12,8% dos pretos e 13,4% dos pardos.

Ao se observar a posição na ocupação entre brancos, pretos e pardos, observou-se uma maior representação das pessoas que se declararam brancos entre os grupos com proteção da previdência social (empregados com carteira de trabalho assinada, militares e funcionários públicos estatutários), assim como entre os empregadores (3,0% entre brancos, enquanto 0,6% entre pretos e 0,9% entre pardos).”

E isso é o que a gente quer dizer, quando diz que a pobreza tem cara e tem cor. Apesar de eu realmente achar que não há um brasileiro vivo, que não saiba, por vivência, que há mais negros e pardos entres os pobres e mais brancos entre os ricos, parecem que existem sim – entre os comentaristas do último post, por exemplo – ignorantes da realidade brasileira nesta medida, então é sempre bom ter uma estatística da manga 😉 E, por favor, não me venham com essa ladainha de “riqueza e pobreza é uma categoria que depende do referencial” ou “como definir quem é negro e quem é branco num país miscigenado como o nosso?”, porque, bom, por favor, eu não vou nem responder.

E é aí que chegamos a vocês, os tais brancos, classe-média, estudantes de cursinho particular. Vocês, vejam bem, são os privilegiados de hoje, pelo sistema absolutamente perverso do vestibular. E, ao que podemos notar pelos depoimentos dados em jornais, na internet, e na caixa de comentários deste humilde blog, não fazem a menor ideia de que estudar em uma universidade pública é um privilégio, não um direito natural da “classe” de vocês. Educação é um direito que deveria ser garantido a todos e o Estado brasileiro falha, há muitos anos, ao não conseguir empreender isso. E, ao instituir o vestibular como porta de entrada para as universidades, falha novamente, ao permitir que, por tal sistema, um recorte de classe e de renda tão grotesco se construa dentro das universidades. E o Estado, meus queridos, tem a obrigação de corrigir esses erros. O mais rápido possível. Ao contrário do que muitos de vocês pensam, os negros e pobres não podem mais esperar.

Aos que vaticinam que, então, o Estado deveria melhorar o ensino básico para que esses estudantes pudessem chegar em pé de igualdade com os de escola particular ao vestibular, eu pergunto: porque tanto apego ao maldito do vestibular? Se alguém ainda acredita que a prova de vestibular e seus montes de “conhecimentos” decorados é baliza do conhecimento de alguém, eu tenho alguns educadores muito sérios prontinhos para discordar de você. A educação no mundo inteiro está se adaptando para ser mais inclusiva, mais reflexiva, menos avaliativa e você ainda está aí achando que o bom mesmo é fechar a prova de física? Será que você não reparou que até o vestibular brasileiro está mudando, e abraçando mais o formato de prova do Enem, por exemplo, que valoriza mais o raciocínio e a interpretação e menos o decoreba? De resto, é óbvio que o Estado precisa melhorar o ensino básico, o curioso é vocês estarem batalhando tanto por isso ultimamente, justamente no momento em que sentem suas preciosas vaguinhas sendo ameaçadas por esses “coitadinhos” que estão é com preguiça de estudar as mesmas 10 horas diárias que vocês.

Pra concluir, um esclarecimento: não sei quem disse para vocês que a função primordial da universidade é formar eficientes “engenheiros, médicos e advogados” (curiosamente só são citadas essas profissões, as tais “úteis” para a nossa sociedade). E não sei também quem disse que o requisito indispensável para que isso aconteça é tirar boas notas numa prova de vestibular. A função da universidade é fomentar o conhecimento, é contribuir para a formação plena do cidadão, portanto, caso alguém chegue “despreparado” até suas cadeiras (defina despreparado) não é mais do que obrigação dos profissionais ali lotados, prepará-lo! E não é mais do que obrigação da universidade se abrir de todas as formas possíveis para todas as parcelas da população, com ênfase nos que estão hoje excluídos dela, senão, eu me pergunto: para quem está se fomentando o conhecimento? Que cidadãos, nesse universo excludente, estão sendo formados?

Engana-se quem pensa que a política de cotas trata-se, exclusivamente, de dar oportunidades aos que não têm. É também sobre oportunizar às próprias universidades que reescrevam sua história, que representem, de fato, a sociedade brasileira como ela é e que ajudem, assim, a mudá-la para melhor. Afinal de contas, para que serve o conhecimento, senão para nos levar adiante?